O Vale de Santarém

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O Vale de Santarém

O vale de Santarém é um destes lugares privilegiados pela Natureza, sítios amenos e deleitosos em que as plantas, o ar, a situação, tudo está numa harmonia suavíssima e perfeita: não há ali nada grandioso nem sublime, mas há uma como simetria de cores, de tons, de disposição em tudo quanto se vê e se sente que não parece senão que a paz, a saúde, o sossego do espírito e o repouso do coração devem viver ali, reinar ali um reinado de amor e benevolência. As paixões más, os pensamentos mesquinhos, os pesares e as vilezas da vida não podem senão fugir para longe. Imagina-se por aqui o Eden que o primeiro homem habitou com a sua inocência e com a virgindade do seu coração.
À esquerda do vale, e abrigado do norte pela montanha que ali se corta quase a pique, está um maciço de verdura do mais belo viço e variedade. A faia, o freixo, o álamo entrelaçam os ramos amigos; a madressilva, a musqueta penduram de um a outro suas grinaldas e festões; a congossa, os fetos, a malva-rosa do valado vestem e alcatifam o chão.
Para mais realçar a beleza do quadro, vê-se por entre um claro das árvores a janela meia-aberta de uma habitação antiga mas não delapidada – com certo ar de conforto grosseiro, e carregada na cor pelo tempo e pelos vendavais do sul a que está exposta. A janela é larga e baixa: parece mais ornada e também mais antiga que o reste do edifício, que todavia mal se vê…
Interessou-me aquela janela.
Quem terá o bom goste e a fortuna de morar ali?
Parei e pus-me a namorar a janela.
Encantava-me, tinha-me ali como um feitiço.
Pareceu-me entrever uma cortina branca… e um vulto por detrás… Imaginação decerto! Se o vulto fosse feminino… era completo o romance.
Como há-de ser belo ver pôr o sol daquela janela!…
E ouvir cantar os rouxinóis!
E ver raiar uma alvorada de Maio !…
Se haverá ali quem aproveite a deliciosa janela?… quem apre­cie e saiba gozar todo o prazer tranquilo, todos os santos gozos de alma que parece que lhe andavam esvoaçando em torno?
Se for homem é poeta; se é mulher está namorada.
São os dois entes mais parecidos da Natureza, o poeta e a mulher namorada; vêem, sentem, pensam, falam como a outra gente não vê, não sente, não pensa nem fala.
Na maior paixão, no mais acrisolado afecto do homem que não é poeta, entra sempre o seu canto de vil prosa humana: é liga sem que se não lavra o mais fino do seu ouro. A mulher não; a mulher apaixonada deveras sublima-se, idealiza-se logo, toda ela é poesia, e não há dor fisica, interesse material, nem deleites sensuais que a façam descer ao positive da existência prosaica.
Estava nestas meditações, começou um rouxinol a mais linda e desgarrada cantiga que há muito tempo me lembra de ouvir.
Era ao pé da dita janela!
E respondeu-lhe logo outro do lado oposto; e travou-se entre ambos um desafio tão regular em estrofes alternadas tão bem medidas, tão acentuadas e perfeitas, que eu fiquei todo dentro do meu romance, esqueci-me de tudo mais.
Lembrou-me o rouxinol de Bernardim Ribeiro, o que se dei­xou cair na água de cansado.
O arvoredo, a janela, os rouxinóis… àquela hora, o fim da tarde… que faltava para completar o romance?
Um vulto feminino que viesse sentar-se àquele balcão — ves­tido de branco… oh! branco por força… a fronte descaída sobre a mão esquerda, o braço direito pendente, os olhos alçados ao céu… De que cor os olhos? Não sei, que importa! é amiudar muito de mais a pintura, que deve ser a grandes e largos traços para ser romântica, vaporosa, desenhar-se no vago da idealidade poética…
Os olhos, os olhos… disse eu, pensando já alto, e todo no meu êxtase, os olhos… pretos.
— Pois eram verdes!
— Verdes os olhos… dela, do vulto da janela?
— Verdes como duas esmeraldas orientais, transparentes, brilhantes, sem preço.
— Quê! pois realmente?… É gracejo isso, ou realmente há ali uma mulher bonite e?…
— Ali não há ninguém — ninguém que se nomeie hoje, mas houve… oh! houve um anjo, um anjo, que deve estar no céu.
— Bem dizia eu, que aquela janela…
— É a janela dos rouxinóis.
— Que lá estão a cantar.
— Então, esses lá estão ainda como há dez anos — os mesmos ou outros, mas a Menina dos rouxinóis foi-se e não voltou.
— A Menina dos rouxinóis! Que história é essa? Pois deveras tem uma história aquela janela?
— É um romance todo inteiro, todo feito, como dizem os Franceses, e conta-se em duas palavras.
— Vamos a ele. A Menina dos Rouxinóis, menina com olhos verdes! Deve ser interessantíssimo. Vamos à história já.
— Pois vamos. Apeemo-nos e descansemos um bocado.
Já se vê que este diálogo passava-se entre mim e outro dos nossos companheiros de viagem.

 

Almeida Garrett  (1799-1854)
in « Viagens na Minha Terra »