Rio Leça

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Rio Leça

Leça era noutro tempo uma terra à parte no mundo, de ingleses velhos, de poetas e de marítimos. Tinha um velho forte transformado em hotel, ruas misteriosas e casas com degraus de pedra para os grandes portões vermelhos, que nunca se abriam, e um fio de rio – o mais feliz do mundo – onde a água corria devagar entre salgueiros, parando, cismando, reflectindo a camada de folhas, umas verdes, outras de oiro. Vinha de cima dos pinheirais isolados e acarretava folhas; vinha dos campos de milho e cheirava a bravio; vinha dos açudes onde as lavadeiras cantam e trazia consigo o eco das risadas. Embalava o barco do Montalvão, que, no fundo da caverna, sonhava, de barriga para o ar, a mais bela obra do mundo. (…) Descia, estremecia (…), parava entre as árvores que se fechavam em cima formando uma abóbada, e acabava em fim por fazer mover o velho moinho de ao pé da ponte. (…) E sentia-se que o rio tinha pena de acabar. Estava cheio de versos, de cantigas, de silêncio, entontecido e quase humanizado. (…)
Hoje quase tudo isto desapareceu:  por Leça passou um terramoto. O rio, sem o Montalvão e sem as árvores, perdeu todo o encanto. Tenho medo de lá tornar, como tenho medo de ir à Foz: por toda  a parte vejo fantasmas. (…) Só o mar inalterável conserva a mesma beleza e a mesma tragédia.

Raul Brandão  (1867-1930)
in « Livros  e  Escritores », 1923