também planto árvores… no planalto da cesareda
Quero partilhar convosco as razões que me levaram a arborizar uma pequena parcela vinda dos meus antepassados. Outrora coberta de mato e de arvoredo, depois vinha, mas que hoje não é cultivada, nem o será mais… Razões que as alterações económicas, sociais e técnicas agrícolas surgidas entre nós, em finais dos anos 60, princípios de 70, tornaram patentes.
É o testemunho pessoal de uma consciencialização perante a nossa inclinação em destruir e eliminar todas as outras formas de vida, sempre que estas sejam consideradas como obstáculos à vontade de dominar, de possuir. Comportamento que parece não ter limites, pois é impulsionado pelo desenvolvimento económico, produtivismo e consumismo, doutrinas redutoras que desdenham o Humano e a essência da Vida na sua variedade e esplendor, sem esquecer as paisagens.
Apenas focalizo um pequeníssimo período da história, menos de cem anos, em que tudo acelerou, até esquecer que somos parte integrante da biodiversidade do nosso planeta.
Planto árvores entre a vegetação já existente, sem outro fundamento que o da vida pela vida, sem justificar, sem cálculo pernicioso, excepto o de suscitar em vós talvez, o empenho de plantar também um bosque.
É uma pequena fazenda, que mal passa do meio hectar, para os lados do Sapatinho situado no Norte do planalto da Cesareda, na qual brinquei quando pequeno. Acompanhava então o meu pai e avô que aí cultivavam a vinha, macieiras, pereiros, figueiras, pessegueiros e, antes que o estio chegasse, entre as cepas havia favas, ervilhas, batatas e por vezes grão, lentilhas e chícharo.
A terra, pesada, era trabalhada unicamente à força de braços; a que havia entre pedras e lajes. Alqueivava-se, cavava-se de maneira que desse alguma colheita. Os homens chegavam mal o Sol rompia, lado a lado por grupos de três ou mais. Com as enxadas arrancavam leivas que voltavam e em seguida com o bico da mesma quebravam, movendo profundamente a terra até ao sol-posto.
Na altura das podas já o céu estava empaneado e chuvoso. O vento saturado de humidade vindo do mar próximo, gelava as mãos que cortavam as vides, ficando só algumas por cepa que vergadas em forma de gota-de-água, solidamente atadas por junco seco, dariam a flor e as uvas do ano seguinte. As vides juntas em molhos, serviriam par atear o forno do pão e as que ficassem no lugar para assar sardinhas do almoço nos dias perfumados da Primavera.
Sentia-me livre neste espaço, onde brincava e descobria. Corria entre as cepas, encurraladas pelos muros de pedra-solta, obra do meu tio Joaquim, avô Zé Pinta e pai, cuja monotonia depressa me levava a procurar outos lugares cobertos de mato, não muito longe, onde a curiosidade e imaginação me transportavam. Como garoto a idade não me permitia participar na faina. Observava os carreiros de formigas, aquelas que têm grandes fateixas, perturbando-as na sua lida. Na altura dos ninhos, procurava-os, só para ver os ovos e saber de que espécie eram, ou as tocas dos coelhos e de outros bichos de que ouvira falar como o texugo, mas procurava também um raro arbusto que me atraía: o medronheiro, que assemelhava a uma árvore de natal com as suas bolas amarelas e vermelhas, os frutos também os comia, mas rapidamente me enjoavam, não tinham gosto, eram insípidos comparados com o sabor da uva, ou das maçãs e pêros carinhosamente cultivados.
Vinham as vindimas em Setembro; havia por todo o lado grupos a vindimar. Cada um com a sua cesta e tesoura a cortar os cachos, até eu trabalhava; enchiam-se os cestos que os burros carregavam dias inteiros até aos lagares. Por vezes, participava na esmaga da uva em tanques ou tinas, obtinha-se o mosto que depois seria primido pela prensa. Eram momentos de festa, de alegria e de solidariedade: era uma comunidade. O vinho, esse, era vendido à cooperativa do Bombarral, quer o ano fosse bom ou mau. Mas antes recuperava-se o mosto com o qual se fazia a água-pé, para consumo da casa. Nunca provei o vinho do meu pai, era pequeno, não me era permitido beber antes de certa idade que atingi quando as vinhas já estavam abandonadas. Hoje a viticultura faz parte do passado nesta zona do Oeste, onde, que eu saiba, nunca houve vontade ou consciência de produzir vinho de qualidade, especificamente fruto da terra, do clima, da sabedoria e do trabalho do homem…
É terra agreste que nunca devia ter sido cultivada, mas a necessidade e a tenacidade (ou a fome!) obrigou algumas gerações de braços, em finais do século XIX e princípios do século passado, a tomar posse daqueles baldios.
Primeiro foi preciso arrotear…cortar, arrancar todas as plantas que ali cresciam até à raiz… O mais difícil fora certamente limpar a terra das pedras que cobriam anarquicamente o chão; juntá-las e com elas construir pacientemente muros de pedra solta, delimitando deste modo as parcelas e carreiros onde dois burros mal se cruzavam. As mesmas,
acumulavam o calor que durantes as noites favorecia o amadurecimento da uva. Construiram-se com arte e saber centenas de muros de pedra solta ou pedra seca por todo o planalto. Quando havia lajes, a superfície destas era aproveitada para aí amontoar pedras também, juntinhas, irmanadas, imóveis com pretensões de torres abortadas que as heras depressa cobririam…E assim, pouco a pouco a terra limpa oferecera-se à enxada, pronta a dar tudo menos seara de regadio… aqueles baldios, foram conquistados à força, com muito suor, sangue também e necessidade de sobreviver.
Veio por fim o momento de plantar o bacelo, os pés de marmeleiro e enxartá-los com castas locais e outras e reineta e pessegueiro de vinha para os marmeleiros. A obra estava pronta e necessitaria doravante um assédio contínuo; em troca de uma gota de suor daria uma gota de vinho!
Este trabalho desumano durou até ao princípio dos anos 70, altura em que começou a mecanização agrícola e se passou de uma agricultura de subsistência para uma agricultura intensiva. As vinhas das Cesaredas plantadas em terras de sequeiro, onde a mecanização é impossível devido ao grande afloramento rochoso, foram abandonadas e começaram a definhar. Pouco a pouco, os burros desapareceram; eles que docilmente carregavam tudo, a uva dourada ou negra-azul, as faias e até os homens,… substituídos por pequenos tractores barulhentos… Já ninguém mais queria alquevar, os salários aumentavam de ano para ano. O proveito não compensava tanto trabalho e despesa… Foi assim que deixaram de ser amanhadas.
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Em redor do pequeno planalto onde as terras de areia estavam ocupadas por pinhais e mato, os homens rapidamente começaram a cortá-los, transformando-os em terras de regadio com a ajuda dos motores de rega. É que são terras limpas de uma outra natureza, em que as máquinas se movimentam como bem se quer e que dão lucro. Abriram-se poços em abundância antes da chegada dos furos de dezenas de metros de profundidade. As areias, como pedra filosofal, transformam-se em oiro e hoje, com a ajuda de água abundante e muitos produtos químicos abastece-se em parte o mercado nacional de legumes e bacelo, cultura própria da aldeia. As vinhas das Cesaredas, sem o amparo dos homens começaram por lançar vides ao céu antes que a falta da indispensável e contínua atenção do viticultor as deixasse morrer lentamente, seguidas pelos pereiros, pessegueiros e tudo o mais que o cuidado do homem lá plantara… A magra vegetação natural refugiada até aí em reclusos solos tão pedregosos que ninguém os quisera amanhar, recuperou as terras que desde sempre delas foram. Começaram a aparecer aqui e ali, trovisco, pinheiro-bravo, carvalho-cerquinho, carrasco, aderno, abrunheiro, aroeira, giesta, loureiro e até a sorveira-doméstica, não faltando a silva, o sargaço, a roseira e a salsaparrilha. Em poucos anos constituiram uma cobertura vegetal que acabaram por afogar o que restava das vinhas. A terra voltava ao que fora, brava e pura… Entretanto, o gado dava-lhe algum desbate, os caçadores caçavam os poucos coelhos que as doenças pouparam.
O tempo da reconquista foi breve, pois aquelas terras continuavam a suscitar interesse, mas como rentabilizá-las? Incitados pela propaganda da indústria papeleira, os antigos viticultores reconverteram centenas de hectares em eucaliptais. Foi uma epidemia… A “seara” é simples de cultivar; brava, não precisa de muito cuidado, nem de rega, cabras e ovelhas não os querem, de crescimento rápido são cortados ao fim de uma dezena de anos proporcionando algum rendimento.
Anos depois, não vivendo na aldeia, sempre que lá ia, visitava “a sareda do avô Zé Pinta“, como se dizia. A vegetação espontânea, safa da coerção do cultivador e com a ajuda das aves e do vento, alterava-se de ano para ano. Pequenas moitas apareciam aqui e além dando ao conjunto um aspecto silvestre, quase virgem e intrigante… Durante cerca de vinte anos pôde crescer e desenvolver-se como “quis”. Os pastores eram poucos. No final dos anos 90 constatei a existência de pinheiros-bravos e de carvalhos-cerquinhos na parcela, árvore que me fascinava. Questionei os familiares e pessoas da aldeia. Por assim dizer ninguém dava qualquer importância ao cerquinho. Este formoso carvalho era puramente ignorado pelo povo que nada sabia acerca dele, nem manifestava qualquer interesse ou
curiosidade: “para que queres tu isso? Isso não se come!” era a resposta dada, cheia de “bom senso” popular, prático …Voltei-me para os livros e constatei que não existiam guias de campo em português. Acabei por encontrar numa livraria em Caldas da Rainha “Árvores e Florestas” de António Fabião. Com a ajuda deste e de outros livros editados mais tarde fiquei a saber que o cerquinho está, por assim dizer, hoje reduzido à Região Oeste e sempre isolado ou disperso em pequenos bosquetes, facto que já tinha observado nos campos em redor da aldeia. Actualmente sei que esta fraca frequência é o fruto de um declínio que o homem impõe, que as florestas originais, parcialmente compostas por esta quercínea foram destruídas por mão humana, sem possibilidade de regeneração natural e que se apagou na memória colectiva os mitos e a relação a esta árvore, se jamais existiram!
Fica a lembrança do que me contava o meu avô acerca das árvores e em particular dos carvalhos, que hoje sei referir-se sobretudo ao cerquinho, certamente muito mais abundantes na altura. A memória é traste e ele, há muito que se foi. É impossivel para mim, confirmar tudo isto junto do seu saber de serrador-lenhador e de maravilhoso contador de estórias. Para sempre serei a criança e ele o avô, que sem saber me transmitiu o amor pelas árvores.
É a história incompleta dos meus antepassados, familiares e conterrâneos, e igualmente minha, da qual apenas conheci o rastilho final… ficam as lembranças de dias luminosos ao lado do meu pai a podar, sulfatar, enxofrar, desparrar ou vindimar a vinha, e eu a tentar avistar ao longe, em dias límpidos, a ténue linha azul do mar…
A ideia de arborizar aquela parcela, que fora anos passados vinha e anteriormente bosque, germinou em reacção aos fogos de 2003. Nesse ano, em Agosto, estava de férias com a família no sul do País, ano em que arderam mais de 400.000 hectares de vegetação, nomeadamente na serra de Monchique onde dias antes participara num percurso pedestre. As belas paisagens que admirei transformaram-se em cinza. A castatrófica vaga de incêndios nesse verão chocou-me, como a muitos portugueses. Desastre ecológico destruidor de valiosos biotopos.
Quanto ao planalto da Cesareda, via-se a rápida alteração das suas paisagens. O número de parcelas eucaliptadas aumentava de ano para ano. Não podia aceitar que tanto esforço antepassado, agora inútil e no entanto merecedor de respeito, fosse sumido por um estéril eucaliptal, com os seus troncos alinhados em fila como soldados prontos a combater qualquer vida vegetal que não a da própria espécie: globulus, globalização aniquilidora de diferenças, em suma o empobrecimento da biodiversidade a negação dos ecossistemas… e não só, como os proprietários não os cortavam antes de atingirem a maturidade sexual, via-se por todo o planalto pequenos eucaliptos assilvestrados, cujas sementes levadas pelo vento, germinavam entre a vegetação autóctona, tornando-se invasores e impedindo a mesma de se desenvolver e regenerar depois dos fogos. A outra grande alteração da paisagem do planalto, foi a destruição dos muros de pedra solta. Criou-se na indiferença geral, inclusive dos propietários dos terrenos, um comércio de pedras, às carradas, para servirem de alicerces das casas construídas nos anos 80 e 90. Os caminhos que dantes estavam delimitados, perderam o traçado. Nos eucaliptais, as máquinas pesadas dos madeireiros desmoronaram muitos deles. Hoje em dia, ainda lá permanecem alguns, os que escaparam ao derrube ou que não foram desmantelados selvagemmente, mas permanecem sem protecção.
Todas estas razões empenharam-me em fazer algo que me parece importante: preservar e aumentar a riqueza do meio natural e honrar os meus antepassados, com uma visão voltada para o futuro. Decidi agir em dois aspectos: priviligiar o plantio de plantas nativas e criar um web-sítio sobre as árvores e arbustos que vivem no território português continental e insular.
As primeiras plantações, constituída por carvalho-português, sobreiros e pinheiros, foram feitas em Março de 2004, com as seguites regras: manter o que já existia, mas “ajudar” a Mãe-natureza a acelerar o processo de instalação das espécies indígenas. Sei que é uma pedrinha no edíficio, mas ficar indiferente não era possível.
Dezembro de 2017
Octávio Manuel Monteiro