A Árvore

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Sophia de Mello Breyner Andresen

 

A Árvore

Era uma vez – em tempos muito antigos, no arquipélago do Japão – uma árvore enorme que crescia numa ilha muito pequenina.
Os japoneses têm um grande amor e um grande respeito pela Natureza e tratam todas as árvores, flores, arbustos e musgos com o maior cuidado e com um constante carinho.
Assim, o povo dessa ilha sentia-se feliz e orgulhoso por possuir uma árvore tão grande e tão bela: é que em nenhuma outra ilha do Japão, nem nas maiores, existia outra árvore igual. Até os viajantes que por ali passavam diziam que mesmo na Coreia e na China nunca tinham visto uma árvore tão alta, com a copa tão frondosa e bem formada.
E, nas tardes de Verão, as pessoas vinham sentar-se debaixo da larga sombra e admiravam a grossura rugosa e bela do tronco, maravilhavam-se com a leve frescura da sombra, o suspirar da brisa entre as folhagens perfumadas.
Assim foi durante várias gerações.
Mas, com o passar do tempo, surgiu um problema terrível, e por mais que todos meditassem e discutissem, ninguém era capaz de arranjar uma boa solução.
Porque, ao longo dos anos, a árvore tinha crescido tanto, os seus ramos tinham-se tornado tão compridos, a sua folhagem tão espessa e a sua copa tão larga que, durante o dia, metade da ilha ficava sempre à sombra.
De maneira que metade das casas, das ruas, das hortas e dos jardins nunca apanhava sol.
E, na metade ensombrada, as casas estavam a ficar húmidas, as ruas tinham-se tornado tristes, as hortas já não davam legumes, os jardins já não davam flor. E a gente que ali morava andava sempre pálida e constipada.
E, à medida que a sombra da árvore crescia, crescia também a perturbação.
As pessoas gemiam:
— Que havemos de fazer? Que havemos de fazer?

* * *

Até que foi decidido a população reunir-se toda em conselho para examinar bem o problema e decidir o remédio que devia dar-lhe.
Discutiram durante muitos dias e, depois de todos terem falado, chegou-se à triste conclusão de que era preciso cortar a árvore.
Houve choros, lamentações, gemidos.
A árvore era bela, antiga e venerável. Fazê-la desaparecer era um acto que não só entristecia os habitantes da ilha mas que também os assustava.
Mas não havia outro remédio e quase todos acabaram por concordar com o corte.
No lugar onde antes ela se erguia, plantaram um pequeno bosque de cerejeiras, pois as cerejeiras nunca crescem muito.

* * *

Abater a árvore foi difícil e toda a gente teve de ajudar.
Mas, depois de cortada, ela ocupava tanto espaço que a ilha ficou quase sem lugar para mais nada. Por isso começaram a desfazê-la: primeiro cortaram os ramos e as pernadas e a sua madeira foi distribuída entre todos, para que cada um pudesse fabricar alguma coisa que lhe lembrasse a árvore tão amada.
Alguns fabricaram pequenas mesas, outros, varandas para as suas casas, outros, caixilhos para os biombos, outros, caixas, tabuleiros, tigelas, colheres, pentes e ganchos para as mulheres espetarem no cabelo.
No fim ficou só o enorme e grosso tronco nu, deitado através da ilha.
Então começaram a chegar viajantes e armadores que queriam aquela óptima madeira para fabricar barcos.
Mas a população não quis. Reuniram todos outra vez em conselho e decretaram:
— Os habitantes desta ilha não querem separar-se da sua árvore que, antes de crescer demais, lhes deu tanta alegria. Vamos nós próprios construir o nosso barco.
E assim foi. Depois da chuva do Outono, deixaram o tronco secar durante longos meses e, logo que viram que a madeira já estava bem seca, meteram mãos à obra.
E, como são um povo muito inteligente, os japoneses, que trabalham muito bem, muito depressa, com muito esmero e são óptimos carpinteiros, construíram rapidamente uma grande e linda barca toda esculpida e pintada de muitas cores.
Então houve uma grande festa e a barca foi lançada ao mar.
À noite houve fogo de vista e em todas as ruas e praças se acenderam balões de papel, azuis, amarelos e vermelhos.

* * *

Assim, durante muitos anos, a vida naquela ilha correu com muita alegria e animação.
Mas apesar dessa alegria, apesar dos bons negócios e dos grandes passeios, todos se lembravam com saudade da velha árvore.
— Como era alta e bela! — diziam.
— Como a sua sombra era perfumada!
— Como era doce e leve o sussurrar da brisa nas suas folhas!
— Como a sua copa era redonda e bem formada!
— Como as suas folhas eram verdes e bem desenhadas!
— Como era tão suave a frescura debaixo dos seus ramos, nas manhãs de Verão!
E, assim, entre palavras e pensamentos, a árvore nunca era esquecida.

 

* * *

E os anos foram passando.
Até que os marinheiros e os calafates descobriram que estava a acontecer uma grande desgraça:
A madeira da quilha da grande barca tinha começado a apodrecer.
— Ai de nós! — choravam os habitantes. — Não vamos dar mais passeios pelo mar. Nas noites de lua cheia, não vamos visitar mais as outras ilhas, não vamos fazer mais negócios.
Mas os comerciantes sossegaram-nos.
— Durante estes anos — disseram eles — graças à nossa grande barca, andámos a navegar de ilha em ilha, de porto em porto, a comprar e a vender, e fizemos negócios tão bons que juntamos muito dinheiro. Por isso, como aqui não há outra árvore enorme, e as árvores que agora temos fazem muita falta se forem cortadas, estamos dispostos a ir às outras ilhas comprar boa madeira. E todos juntos podemos construir outra grande barca.
A população aplaudiu o discurso e concordou com o projecto e daí a poucos meses a barca nova ficou pronta e logo a puseram a flutuar.
Então, a barca velha foi arrastada para a praia. O povo cercou-a em silêncio com grande tristeza, e os carpinteiros e os calafates examinaram-na tábua por tábua.
A madeira do casco, do convés e dos bancos estava quase toda semi-apodrecida e só servia para queimar. Mas o mastro grande, que tinha sido tirado do cerne da velha árvore, continuava são e bem conservado.
— Temos que fazer com este mastro alguma coisa que nos lembre a nossa árvore antiga e a nossa barca — disse o chefe da ilha.
Depois de muito pensar resolveram fazer uma biwa, que é uma espécie de guitarra japonesa.
Quando a obra ficou pronta, a população reuniu-se na praça principal e sentaram-se em silêncio em redor do melhor músico da ilha para ouvirem o som da biwa.
Mas, mal os dedos do músico fizeram soar as cordas, de dentro da biwa ergueu-se uma voz que cantou:

A árvore antiga
Que cantou na brisa
Tornou-se cantiga

Então, todos compreenderam que a memória da árvore nunca mais se perderia, nunca mais deixaria de os proteger, porque os poemas passam de geração em geração e são fiéis ao seu povo.

 

Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004)
in « A Árvore », 1987 – Porto, Livraria Figueirinhas, 1987

 

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