Debaixo d’uma arvore

Sophia de Mello Breyner Andresen, jovem
Os Troncos das Árvores
29 mars 2016
A Alma das Árvores
29 mars 2016

Debaixo d’uma arvore

Enzinhas que entouçaes o tronco tosco,
Soltae folhas, fazei-me a cama d’ouro,
Que um desgraçado vem chorar comvosco.

Enquanto eu aqui seja, vos agouro,
Tereis agua de lagrymas bastante,
Porque sobram motivos do meu chôro.

O pensamento dóe-me a cada instante :
Nem confortos me abrandam, que ao enfermo
Todo o conforto lhe é mortificante.

Trago commigo um mal que não vê termo;
Comvosco desabafo o meu desgosto,
Porque o mundo não pode comprehnder-m’o.

Tudo o que tenho na lembrança posto,
Mal me alembro, desfaz-se, freixo rude,
E em lagrymas me tomba pelo rosto.

Mas como foi que eu escolher-vos pude
Para contar-vos intimas molestias,
A vós, cheias de seiva e de saude ?

As vossas grenhas verdes, o sol veste-as;
E na sombra do chão, áspero e duro,
Nomes escreve com douradas resteas.

o musgo sobe ao tronco bem seguro;
Trucilam tordos, palram estorninhos
Em cada galho musculoso e escuro.

Antes eu conte ás pedras dos caminhos
Meu desgosto : são pallidas como eu;
As lastimas espantam vossos ninhos.

Como do ninho o tordo não vê céu,
De ouvir contar angustias tão escuras,
Não vá elle cuidar que anoiteceu …

O melhor confidente d’amarguras
É o que nada diz e tudo escuta,
Vidrado o olhar por nossas desventuras :

E vós quasi assim sois, enzinha bruta !
Meu coração, o mundo contrafez-m’o;
É elle que a si falla e a si se escuta :

Quando vos fallo a vós, fallo a mim mesmo

 

Júlio Dantas (1876-1962),
in « Nada »,  Editor— António Maria Pereira, 1896

(Ortografia da edição original)